domingo, 3 de março de 2013

Latitudes


Latitudes é uma série fragmentada em oito episódios que foram disponibilizadas no canal do YouTube, a fim de divulgar o filme que estreará em fevereiro de 2014. O diretor Felipe Braga e sua equipe produziram uma ficção amorosa em forma de documentário exibido em uma das mídias mais modernas  – o Youtube,  a plataforma que permite o compartilhamento fácil de conteúdos e informações globais. Coincidência ou não, esse formato transmídia acolhe e casa muito bem com o insight do enredo em que a complexidade de se ter a vida regida por certa dinâmica constante entra em questão. A trama Latitudes conta, de uma forma não linear a história dos encontros e desencontros de um fotógrafo chamado José, interpretado pelo ator Daniel Filho, e uma editora de moda Olívia, cujo papel é de Alice Braga. O filme começa com os dois conversando no bar, já quase íntimos, mas só no final do primeiro episódio que é revelado como ambos se conheceram ao acaso em Paris. Desde então, encontros e despedidas entre os dois são mostrados nos próximos sete episódios em quartos de hotéis refinados de cidades como Londres, Veneza, São Paulo, Porto, Buenos Aires e Istambul.
A composição do figurino, do comportamento e da fala de ambos permite ao espectador notar que as personagens são pessoas ocupadas e, de certa forma, bem-sucedidas em suas profissões. Porém, uma certa melancolia ronda os dois, mas principalmente, a confusa editora de moda. Olívia, a princípio, parece uma mulher forte, sexy, misteriosa e decidida. No entanto, conforme o enredo da trama vai lentamente se desenvolvendo, ela se revela uma mulher perdida, confusa e que procura o acaso para suprir sua solidão. Ela chega a ser o reflexo de muitas mulheres do século XXI: livres e independentes, porém, tomadas por um medo inexplicável e uma solidão confusa. Não diferente, o perdido fotógrafo, que se recusa a fotografar modelos para não corromper sua arte, termina com sua namorada sem saber direito se é por ele mesmo ou se é por Olívia. José também representa as pessoas de hoje, pois tenta ao máximo proteger suas paixões e moralidades. Mas se deixa corromper pelo próprio destino da obrigação de se tornar bem-sucedido, logo, acaba cedendo suas moralidades e fotografa modelos russas no final da trama. Mesmo Olívia terminando seu relacionamento em Buenos Aires e indo até Istambul atrás de José, o episódio termina do mesmo jeito que todos os outros: com a despedida como nas típicas histórias entre um homem e uma mulher, e é por isso que Latitudes representa tão bem o comportamento de uma cultura pós-moderna. Ambos se gostam, ambos se sentem felizes juntos, mas o medo e a mágoa que sentem um do outro, por conta de um sentimento tão intenso e submisso à falta de tempo em suas vidas, acabam optando pelo acaso programado. Talvez um dia se encontrem novamente, talvez se casem, talvez nunca mais se vejam. Eles escolheram pelo incerto, pois a ideia de suspenderem suas vidas cheias de escolhas próprias, regidas por suas profissões, faz com que se tornem dois polos positivos – aqueles que se repelem. Esses dois jovens apaixonados prezam por suas profissões e temem pelo tédio, ingrediente que compõe todo relacionamento, mas acabam caindo na padronização comportamental dos tempos modernos em que vivem e de que tanto fogem: a luta pela individualização.
Pelo ponto de vista freudiano, Olívia e José são o reflexo do próprio indivíduo moderno que é reconhecido pela sociedade em que vive como tal por meio do destaque. De forma que, paradoxalmente, ao tentar se firmar como um sujeito, o indivíduo acaba se padronizando. O diálogo entre os dois parece dois monólogos distintos que se cruzam por conta de um acaso programado, pois ambos sempre estão focados no que pensam, no que sentem, no que anseiam e no que desejam para suas vidas. Não estão preocupados com a felicidade do outro, que deve parecer feliz para amenizar suas próprias angústias. Por exemplo, no clímax que acontece no quarto episódio em que Olívia de certa forma sente-se incomodada pelo fato de José ficar sem jeito ao falar no telefone com alguém. Isso gera a primeira discussão sobre relacionamento entre eles. Portanto, o acaso, que era a segurança de ambos, acaba entrando em jogo, pois notam que não conseguem lidar com ele da forma que esperavam. Isso gera em ambos um grande conflito interno. Com a ênfase do eu e da falsa autonomia, o indivíduo sempre acaba voltando seu discurso para si, projetando todas suas vontades e desejos em outras pessoas. A quebra desse paradigma causa grandes angústias.
A trama também representa com clareza a estrutura da cultura atual, pois os elementos que a compõem só pertencem a mesma. A relação das personagens só acontece por conta da tecnologia e globalização – algo extremamente pós-moderno. Afinal, durante o enredo, eles se encontram em lugares completamente distantes do mundo e isso só seria possível por conta do capitalismo comercial entre os países. Essa globalização faz com que a padronização da cultura local seja cada vez mais intensificada mesmo tendo sua própria característica. Por exemplo, os quartos de hotéis que são de certa forma iguais em qualquer um das cidades visitadas pelo casal. Na medida em que fronteiras locais são abertas, identidades culturais são dissolvidas em fragmentos. O sujeito pós-moderno começa a absorver apenas as essências de outras culturas, pois elas já estão misturadas a outras, portanto, a busca pelo novo acaba sendo ilusória. Com isso, o sujeito pós-moderno torna-se cada vez mais desestimulado, pois a sua autoafirmação como indivíduo começa a se tornar massante.


Por fim, o envolvimento entre José e Olívia representa as relações pessoais modernas que são tratadas, baseando-se nas teorias do sociólogo Zygmunt Bauman, como forma de consumo, nas quais se avalia o indivíduo como uma mercadoria visando àquele que corresponde aos desejos do interessado, e descartando-o assim que o mesmo "perde seu uso". Isso fica claro quando José termina o relacionamento com sua apaixonada namorada em São Paulo e quando Olívia não consegue mais disfarçar sua infelicidade ao estar com seu namorado. Mesmo não conseguindo romper com ele, Olívia é obrigada a terminar o relacionamento Buenos Aires. A atitude de Olivia pode ser explicada de forma eficaz pela frase de Holand Barhes: afinal para o sujeito moderno  “O horror de estragar é ainda mais forte que a angústia de perder”. A falta de tempo em suas vidas e a sagacidade de suas rotinas nada constantes não lhes permite que criem vínculo com nada e ninguém, afinal vivem numa era onde tudo é reificado e regido por um sistema que se alimenta de um vazio impreenchível.